Turma 2017

Aqui estamos iniciando um novo ano de atividades. Pensei que um bom inicio para isso seria ler o belíssimo, poético e consistente texto que nos foi presenteado por Ítalo Calvino, intitulado " A aventura de um fotógrafo". Fico aqui esperançosa de que ele seja lido. Abraços a todas e todos e um feliz ano de trabalho para todos nós.





A AVENTURA DE UM FOTÓGRAFO

Com a chegada da primavera, os habitantes das cidades, às centenas de milhares, saem aos domingos levando o estojo a tiracolo. E se fotografam. Voltam satisfeitos como caçadores com o embornal repleto, passam os dias esperando com doce ansiedade para ver as fotos reveladas (ansiedade a que alguns acrescentam o prazer sutil das manipulações alquímicas na câmara escura, vedada às instruções dos familiares, exalando um cheiro acre dos ácidos), e somente quando põem os olhos nas fotos parecem tomar posse tangível do dia passado, somente então aquele riacho alpino, aquele jeito do menino com o baldinho, aquele reflexo de sol nas pernas da mulher adquirem a irrevogabilidade daquilo que já ocorreu e não pode mais ser posto em dúvida. O resto pode se afogar na sombra incerta da lembrança.
Convivendo com os amigos e colegas, Antonino Paraggi, não-fotógrafo, percebia um crescente isolamento. A cada semana descobria que às conversas daqueles que glorificam a sensibilidade de um diafragma ou discorrem sobre o número de dins se unia a voz de alguém a quem até ontem ele havia confidenciado, certo de que os partilhasse, seus sarcasmos em relação a uma atividade para ele tão pouco excitante e tão desprovida de imprevistos.
Como profissão, Antonino Paraggi exercia funções administrativas nos serviços de distribuição de uma empresa produtiva, mas sua verdadeira paixão era a de comentar com amigos os acontecimentos pequenos e grandes desenredando o fio das razões gerais dentro dos emaranhados particulares; ele era em suma, por atitude mental, um filósofo, e punha toda a sua obstinação em conseguir explanar até os fatos mais afastados de sua experiência. Agora sentia que alguma coisa na essência do homem fotográfico lhe escapava, o apelo secreto que fazia com que novos adeptos continuassem a se listar sob a bandeira dos diletantes da objetiva, alguns gabando os progressos de suas habilidades técnicas e artísticas , outros ao contrário atribuindo todo o mérito à excelência do aparelho que haviam adquirido, capaz (a ouvir-se o que diziam) de produzir obras-primas mesmo se entregue as mãos ineptas (assim eram declaradas as deles, pois, quando o orgulho era forte, em exaltar as virtudes dos engenhos mecânicos, o talento subjetivo aceitava ser humilhado na mesma proporção). Antonino Paraggi entendia que nem um nem outro motivo de prazer eram decisivos: o segredo estava em outra coisa.
É preciso dizer que essa busca na fotografia das razões de uma insatisfação sua – como quem se sente excluído de alguma coisa – era em parte também um truque de Antonino consigo mesmo, para evitar levar em consideração outro, e mais visível, processo que o andava separando dos amigos. O que estava acontecendo era que os conhecidos de sua idade estavam todos se casando, constituindo família, enquanto Antonino ia ficando solteiro. Entre os dois fenômenos ocorria também um vínculo indubitável, na medida em que muitas vezes a paixão pela objetividade nasce de modo natural e quase fisiológico como efeito secundário da paternidade. Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotografá-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável de que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos dos pais um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável. Na mania dos pais novatos de enquadrar a prole na mira para reduzi-la à imobilidade do preto-e-branco ou do diapositivo colorido, o não-fotógrafo e não-procriador Antonino via principalmente uma fase da corrida para a loucura que aquele instrumento preto abrigava. Mas suas reflexões sobre a ligação iconoteca-família-loucura eram rápidas e reticentes; senão ele compreenderia que na realidade quem corria o perigo maior era ele, o solteirão.
No círculo de amizades de Antonino se costumava passar os fins de semana fora da cidade, em bando, seguindo um hábito que para muitos deles vinha desde os anos de estudante, e que se estendera até às noivas e depois às esposas e à filharada, assim como às babás e governantes, e em alguns casos aos parentes por aliança e aos novos conhecidos de ambos os sexos. Mas, como a continuidade da convivência e dos hábitos nunca havia cessado, Antonino podia fingir que nada tinha mudado com o passar dos anos e que aquele ainda era o bando de rapazes e moças de outra época, em vez de um conglomerado de famílias em que ele permanecia o único solteiro sobrevivente.
Cada vez com mais frequência, nessas saídas para as montanhas ou para o mar, no momento da foto de grupo familiar ou interfamiliar, pedia-se a intervenção de um operador de fora, até mesmo de um passante que se prestasse a apertar o botão do aparelho já posto em foco e apontado para a direção desejada. Nesses casos Antonino não podia recusar seus préstimos: recolhia a máquina das mãos de um pai ou de uma
mãe que corriam para se colocar na segunda fila enfiando o pescoço entre duas cabeças ou para se acocorar entre os menores; e concentrando todas as suas forças no dedo indicado para o uso, apertava o gatilho. Nas primeiras vezes um irrefletido enrijecimento dos braços desviava a mira, que pegava mastros de embarcações ou agulhas de campanários, ou decapitava vovôs e titios. Foi acusado de fazer de propósito, censurado por um gênero desagradável de brincadeira. Não era verdade: sua intenção era sempre emprestar o dedo como dócil instrumento da vontade coletiva, mas ao mesmo tempo de se utilizar da posição momentânea de privilégio para advertir fotógrafos e fotografados do significado de seus atos. Assim que a ponta do dedo alcançou a condição desejada de destaque em relação ao resto de sua pessoa e individualidade, enquadrando nesse meio tempo pequenas cenas de conjunto bem- sucedidas. (Alguns sucessos casuais tinham bastado para lhe dar desenvoltura e confiança com as objetivas e os fotômetros.)
- ... Porque, uma vez que você começou – perorava -, não há nenhuma razão para parar. O passo entre a realidade que é fotografada na medida em que nos parece bonita e a realidade que nos parece bonita na medida em que foi fotografada é curtíssimo. Se você fotografa Pierluca enquanto ele está fazendo o castelo de areia, não há razão para não fotografá-lo enquanto está chorando porque o castelo desmoronou, e depois enquanto o ama, o consola fazendo-o encontrar no meio da areia uma casquinha de concha. É só você começar a dizer a respeito de alguma coisa: “Ah, que bonito, tinha era que tirar uma foto!”, e já está no terreno de quem pensa que tudo que não é fotografado é perdido, que é como se não tivesse existido, e que então para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso: ou viver de um modo o mais fotografável possível, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida.
O primeiro caminho leva à estupidez, o segundo à loucura.
- Você vai ficar louco e estúpido – diziam-lhe os amigos -, e ainda por cima chato.
- Para quem quer aproveitar tudo o que passa na sua frente – explicava Antonino mesmo se ninguém o estivesse mais ouvindo -, o único modo de agir com coerência é tirar pelo menos uma foto por minuto desde quando abre os olhos de manhã até quando vai dormir. Só assim os rolos de filme constituirão um diário fiel de nossas jornadas, sem que nada fique excluído. Se eu fosse me meter a fotografar, iria até o fim nesse caminho, à custa de perder a razão com isso. Já vocês ainda pretendem estar fazendo
uma escolha. Mas qual? Uma escolha no sentido idílico, apologético, de consolação, de paz com a natureza, a nação, os parentes. Não é apenas uma escolha fotográfica, a de vocês; é uma escolha de vida, que os leva a excluir os contrastes dramáticos, os cernes das contradições, as grandes tensões da vontade, da paixão, da aversão. Acham assim que estão se salvando da loucura, mas caem na mediocridade, no estupor.
Uma certa Bice, ex-cunhada de alguém, e uma certa Lydia, ex-secretária de outro, pediram-lhe se, por favor, batia um instantâneo delas enquanto jogavam bola entre as ondas. Acedeu, mas, como nesse meio tempo havia elaborado uma teoria contra os instantâneos, apressou-se em comunicá-la às duas amigas:
- O que é que leva vocês, moças, a retirar da movimentada continuidade de sua jornada essas fatias temporais da espessura de um segundo? Jogando a bola uma para a outra estão vivendo no presente, mas mal a divisão dos fotogramas se insinua entre os gestos de vocês já não é o prazer do jogo que as impulsiona e sim o de se reverem no futuro, de se encontrarem novamente daqui a vinte anos num cartãozinho amarelo (sentimentalmente amarelado, mesmo se os processos modernos de fixação o preservarem inalterado). O gosto pela foto espontânea natural colhida ao vivo mata a espontaneidade, afasta o presente. A realidade fotografada assume logo um caráter saudoso, de alegria sumida na asa do tempo, um caráter comemorativo, mesmo se é uma foto de anteontem. E a vida que você vive para fotografar já é desde o princípio comemoração de si mesma. Achar que o instantâneo é mais verdadeiro que o retrato posado é um preconceito...
Assim dizendo, Antonino saltitava no mar em volta das duas amigas para pôr em foco os movimentos do jogo e excluir do enquadramento os reflexos ofuscantes do sol na água. Numa disputa pela bola Bice, que se lançava sobre a outra já submersa, foi apanhada com o traseiro em primeiro plano voando por sobre as ondas. Antonino, para não perder esse ângulo, jogara-se na água de través mantendo a máquina erguida e por pouco não se afogara.
- Saíram todas muito boas, e essa então está sensacional – elas comentaram alguns dias depois, arrancando as provas uma das mãos da outra. Haviam marcado encontro com ele na loja do fotógrafo. - Você é ótimo, tem que fazer outras para nós.
Antonino havia chegado à conclusão de que era preciso voltar às personagens em pose, com atitudes representativas de sua situação social e de seu caráter, como no século XIX. Sua polêmica antifotográfica só podia ser levada adiante do interior da caixa preta, contrapondo fotografia a fotografia.
- Eu gostaria de ter um daquelas máquinas de sanfona – disse ele às amigas -, montada num tripé. Vocês acham que ainda se encontra alguma?
- Bom, quem sabe se em algum ferro-velho...
- Vamos procurar.
As amigas acharam divertida a caça ao objeto curioso: juntos vasculharam
mercados de bugigangas, interpelaram velhos fotógrafos ambulantes, seguiram-nos até seus quartinhos escuros. Naqueles cemitérios de material fora de uso jaziam colunatas, biombos, fundos pintados com paisagens esfumadas; tudo o que evocava um velho estúdio de fotógrafo Antonino comprava. No fim conseguiu por a mão numa máquina- caixão, com disparador de pêra, parecia funcionar perfeitamente. Antonino a comprou com um sortimento de chapas. Ajudado pelas amigas, instalou, num cômodo de sua casa, o estúdio, todo de objetos antiquados, fora dois refletores modernos. Agora estava satisfeito.
- Tem que partir novamente desse ponto – explicou às amigas. - No modo como nossos avôs posavam, na convenção segundo a qual se dispunham os grupos, havia um significado social, um costume, um gosto uma cultura. Uma fotografia oficial ou matrimonial ou familiar ou escolar dava o sentido do quanto cada papel ou instituição tinha em si de sério e importante, mas também de falso e forçado, de autoritário, hierárquico. Este é o ponto: tornar explícitas as relações com o mundo que cada um de nós traz consigo, e que hoje se tende a esconder, a tornar inconscientes, achando que desse modo vão desaparecer, enquanto, ao contrário...
- Mas quem é que você vai mandar posar?
- Venham amanhã e eu vou começar a fazer fotos de vocês como estou dizendo. - Mas me diga: aonde é que você quer chegar? - falou Lydia tomada de uma
desconfiança súbita. Só agora, no estúdio instalado, via que naquilo tudo havia um ar sinistro, ameaçador. - Nem por sonhos vamos servir de modelo para você! Bice soltou risadinhas com ela, mas no dia seguinte voltou à casa de Antonino, sozinha. Estava vestida de linho branco, com bordados coloridos nas beiradas das mangas e dos bolsos. Trazia os cabelos divididos por uma risca e puxados sobre as têmporas. Ria um pouco de soslaio, inclinando a cabeça para o lado. Antonino, fazendo-a entrar, estudava, naqueles seus modos um pouco afetados, um pouco irônicos, quais eram os traços que definiam seu verdadeiro caráter.
Mandou-a sentar numa poltrona grande e meteu a cabeça debaixo do pano preto que guarnecia o aparelho. Era uma daquelas caixas com a parede posterior de vidro,
onde a imagem se espelha já quase como uma chapa, espectral, um pouco leitosa, separada de qualquer contingência no espaço e no tempo. Antonino teve a impressão de estar vendo Bice pela primeira vez. Tinha uma docilidade, em seu modo um pouco pesado de baixar as pálpebras, no jeito de estender o pescoço para a frente, que prometia alguma coisa de oculto, assim como seu sorriso parecia se ocultar por trás do próprio ato de sorrir.
- Pronto, assim, não, a cabeça mais pra lá, levanta os olhos, não abaixa. – Antonino estava perseguindo dentro daquela caixa alguma coisa de Bice que subitamente lhe parecia preciosíssima, absoluta. – Agora está fazendo sombra, vem mais para a luz, não, estava melhor antes.
Havia muitas fotografias possíveis de Bice e muitas Bices impossíveis de fotografar, mas aquilo que ele buscava era a fotografia única, que contivesse tanto umas quanto as outras.
- Não estou pegando você. – Sua voz saía sufocada e lamentosa de sob a capa preta. – Não estou mais pegando você, não consigo pegar.
Liberou-se do pano e se levantou. Estava errando tudo desde o princípio. Aquela expressão, aquele acento, aquele segredo que lhe parecia estar ali a ponto de colher no rosto dela era algo que o estava arrastando para as areias movediças dos estados de ânimo, dos humores, da psicologia: ele também era um daqueles que vão atrás da vida que foge, um caçador do inalcançável como os disparadores de instantâneos.
Tinha que seguir o caminho oposto: visar um retrato todo em superfície, patente, unívoco, que não se furtasse à aparência convencional, estereotipada, à mascara. A mascara, sendo antes de mais nada um produto social, histórico, contém mais verdade do que qualquer imagem que se pretenda “verdadeira”; traz consigo uma quantidade de significados que se revelarão pouco a pouco. Não era exatamente com essa intenção que Antonino tinha construído o circo daquele estúdio?
Observou Bice. Tinha que partir dos elementos exteriores de seu aspecto. No modo de se vestir e de se arrumar de Bice, pensou, era reconhecível a intenção um pouco nostálgica, um pouco irônica, difundida no gosto daquele momento, de evocar a moda de trinta anos antes. A fotografia deveria acentuar essa intenção; como é que não tinha pensado nisso?
Antonino foi procurar uma raquete de tênis; Bice tinha que ficar em pé, de três quartos, com a raquete embaixo do braço, compondo o rosto com uma expressão de cartão sentimental. Para Antonino, de sob o manto preto, a imagem de Bice – no que
tinha de ágil e adequado àquela pose e no que tinha de inadaptado e quase incongruente e que a pose acentuava – pareceu muito interessante. Fez com que mudasse varias vezes de posição, estudando a geometria das pernas e dos braços em relação a raquete e a um elemento do fundo. (No cartão-postal ideal que ele tinha em mente devia haver a rede da quadra de tênis, mas não se podia pretender demais e, Antonino se contentou com uma mesa de pingue-pongue.)
Mas ainda se sentia em terreno seguro: será que não estava procurando fotografar lembranças ou, até, vagos ecos de lembrança que afloravam futura, à maneira dos fotógrafos de domingo, não o estava levando a tentar uma operação igualmente irreal, ou seja, a dar um corpo à lembrança pra que esta substituísse o presente diante de seus olhos?
- Mexa-se, por que fica aí parada? Levante essa raquete, que diabo! Faça como se estivesse jogando tênis! – Enfureceu-se de repente. Havia compreendido que só exasperando as poses se podia atingir uma estranheza objetiva; só fingindo um movimento capturado pela metade se podia dar a impressão do parado, do não-vivo.
Bice se prestava docilmente a executar suas ordens mesmo quando se tornavam imprecisas e contraditórias, com uma passividade que era também um declarar-se fora do jogo, e, contudo, de certo modo insinuando, nesse jogo não seu, os movimentos imprevisíveis de uma sua misteriosa partida. Aquilo que Antonino agora esperava de Bice dizendo-lhe para por as pernas e os braços assim e assado, não era tanto a simples execução de um plano quanto a resposta dela à violência que ele estava lhe fazendo com seus pedidos, uma imprevisível resposta agressiva a essa violência que ele estava cada vez mais inclinado a exercer sobre ela.
Era como nos sonhos, pensou Antonino, contemplando mergulhado na escuridão aquela improvável tenista filtrada no retângulo de vidro: como nos sonhos quando uma presença vinda da profundidade da memória se adianta, dá-se a reconhecer, e logo depois se transforma em algo inesperado, em alguma coisa que mesmo antes da transformação já assusta porque não se sabe em que poderá se transformar.
Estava querendo tirar fotos de sonhos? Esta suspeita o fez calar, escondido naquele refugio de avestruz, a pêra do disparador na mão, como um idiota; e enquanto isso Bice, deixada por sua própria conta, continuava numa espécie de dança grotesca, imobilizado-se em exagerados gestos tenísticos, esquerda, drive, levantando algo a raquete ou abaixando-a até o chão como se o olhar que saía daquele olho de vidro fosse a bola que ela continua a rechaçar.
- Chega, que palhaçada é essa? Não é assim que eu estava pensando. - E Antonino cobriu a maquina com um pano, começou a passear pelo cômodo. Era daquela roupa a culpa de tudo, com suas evocações tenísticas e pré bélicas... Era preciso admitir que em roupa de passeio uma foto como ele descrevia não podia ser feita. Tinha que haver uma certa solenidade, uma certa pompa, como as fotos oficiais das rainhas. Só com um vestido de noite Bice se tornaria um tema fotográfico, com um decote que assinala uma fronteira nítida entre o branco da pele e o escuro do tecido sublinhado pelo reluzir das jóias, uma fronteira entre uma essência de mulher atemporal e quase impessoal em sua nudez e a outra abstração, esta social, do vestido, símbolo de um papel igualmente impessoal, como o drapeado de uma estatua alegórica.
Aproximou-se de Bice, começou a desabotoá-la no pescoço, no peito, a fazer o vestido escorregar por sobre o ombro. Vieram-lhe à lembrança certas fotografias de mulher do século XIX, em que do branco do cartão emerge o rosto, o pescoço, a linha dos ombros descobertos e todo o resto se esvai no branco.
Aquele era o retrato fora do tempo e do espaço que ele agora ele estava querendo: não sabia muito bem como fazer, mas estava decidido a conseguí-lo. Colocou o refletor por cima de Bice, aproximou a máquina, manobrou por baixo do pano para regular a abertura da objetiva. Olhou. Bice estava nua.
Fizera o vestido deslizar até os pés; por baixo não trazia nada; dera um passo para frente; não, um passo para trás que era como um avançar inteirinha dentro do quadro; estava reta, parada diante da máquina, tranqüila, olhando para a frente, como se estivesse sozinha.
Antonino sentiu a visão dela lhe entrar pelos olhos e ocupar todo o campo visual, tirá-lo fora do fluxo das imagens casuais e fragmentárias, concentrar tempo e especo numa forma finita. E, como se essa surpresa de visão e impressionar a chapa fossem dois reflexos ligados entre si, apertou imediatamente o disparador, recarregou a máquina, disparou, pôs outra chapa, disparou, continuou a trocar a chapa e disparar, tartamudeando, sufocado pelo pano:
- Pronto, agora sim, agora está bom, pronto, de novo, agora estou pegando você, de novo.
Não tinha mais chapas. Saiu de sob o pano. Estava contente. Bice estava diante dele, nua, como que esperando.
- Agora você pode se vestir disse ele eufórico, mas já com pressa -, vamos sair. Ela olhou para ele desnorteada.
- Agora peguei você – disse ele.
Bice desandou a chorar.
Antonino descobriu no mesmo dia que estava apaixonado por ela. Começaram a
viver juntos, e ele comprou aparelhos mais modernos, teleobjetivas, acessórios aperfeiçoados, instalou um laboratório. Tinha até dispositivos para poder fotografá-la a noite enquanto dormia. Bice despertava debaixo do flash, contrariada; Antonino continuava a tirar instantâneos dela que se desenredava do sono, dela que se irritava com ele, dela que tentava inutilmente voltar a dormir afundando o rosto no travesseiro, dela que se reconciliava, dela que reconhecia como atos de amor essas violências fotográficas.
No laboratório de Antonino, coberto de películas e provas, Bice surgia de todos os fotogramas, como na reticula de uma colméia surgem milhares de abelhas que são sempre a mesma abelha; Bice em todas as atitudes, ângulos, maneiras. Bice posando ou colhida à revelia, uma identidade esmigalhada numa poeira de imagens.
- Mas que obsessão é essa por Bice? Não pode fotografar outra coisa? – era a pergunta que continuamente ouvia dos amigos, e dela também. - Não se trata simplesmente de Bice – respondia. – É uma questão de método. Qualquer pessoa que você resolva fotografar, ou qualquer coisa, você tem que continuar a fotografá-la sempre, só ela, a todas as horas do dia e da noite. A fotografia só tem
sentido se esgotar todas as imagens possíveis.
Mas não dizia o que realmente importava para ele: colher Bice no caminho
quando ela não sabia que estava sendo vista por ele, tê-la sob o disparo de objetivas escondidas, fotografá-la não só sem ser visto, mas sem vê-la, surpreendê-la como era na ausência de seu olhar, de qualquer olhar. Não que quisesse descobrir qualquer coisa em particular; não era um ciumento no sentido corrente da palavra. Era uma Bice invisível que queria possuir, uma Bice absolutamente sozinha, uma Bice cuja presença pressupunha a ausência dele e de todos os outros.
Pudesse ou não ser definida como ciúme, era em suma uma paixão difícil de suportar. Bice logo o largou.
Antonino caiu numa crise depressiva. Começou a fazer um diário: fotográfico, claro. Com a máquina pendurada no pescoço, afundado numa poltrona, disparava compulsivamente com o olhar no vazio. Fotografava a ausência de Bice.
Recolhia as fotos num álbum: viam-se cinzeiros cheios de tocos de cigarros, uma cama desfeita, uma mancha de umidade na parede. Veio-lhe a idéia de compor-lhe um
catalogo de tudo o que no mundo existe de refratário à fotografia, de deixando sistematicamente fora do campo visual não só das máquinas mas dos homens. Em cima de cada objeto passava dias inteiros, gastando rolos completos, a intervalos de horas, de maneira a acompanhar as mudanças de luz e sombra. Um dia se fixou num canto do quarto totalmente vazio, com um tubo de calefação e mais nada: teve a tentação de continuar a fotografar aquele ponto e só aquele até o fim de seus dias.
O apartamento estava largado ao abandono, papéis e jornais velhos jaziam amarfanhados pelo chão, e ele os fotografava. As fotos nos jornais também eram fotografadas, e uma ligação indireta se estabelecia entre sua objetiva e a de longínquos repórteres fotográficos. Para produzir aquelas manchas negras, a lente de outras objetivas havia localizado batidas policiais, carros carbonizados, atletas em corrida, ministros, acusados.
Antonino agora sentia um prazer particular em retratar os objetos domésticos enquadrados por um mosaico de telefotos, violentas manchas de tinta nas folhas brancas. Do interior de sua imobilidade se pilhou a invejar a vida do repórter fotográfico que se mexe seguindo os movimentos das multidões, o sangue derramado, as lágrimas, as festas, o delito, as convenções da moda, a falsidade das cerimônias oficiais; o repórter fotográfico que documenta os extremos da sociedade, os mais ricos e os mais pobres, os momentos excepcionais que, no entanto, ocorrem a qualquer momento em qualquer lugar.
“Quer dizer que só o estado de exceção tem algum sentido?” perguntava Antonino a si mesmo. “Será o repórter fotográfico o verdadeiro antagonista do fotógrafo dominical? Seus respectivos mundos se excluem? Ou então um dá sentido ao outro?” E assim pensando se pôs a reduzir a pedaços as fotos com Bice acumuladas nos meses de sua paixão, a arrancar as tiras de provas presas nas paredes, a despedaçar o celulóide de negativos, a furar os dispositivos, e amontoava os resíduos dessa metódica destruição sobre jornais estendidos no chão.
“Talvez a verdadeira fotografia total”, pensou, “seja um monte de fragmentos de imagens privadas, sobre o fundo amarrotados dos massacres e das coroações”. Dobrou as pontas dos jornais num enorme embrulho para jogá-lo no lixo, mas primeiro quis fotografá-lo. Dispôs as pontas de modo que se vissem bem duas metades de fotos de jornais diferentes que por acaso no embrulho estavam se encaixando. Até abriu mais um pouco o pacote para destacar um pedaço de papel brilhante de uma ampliação rasgada. Acendeu um refletor; queria que em sua foto pudessem reconhecer as imagens
meio emboladas e despedaçada e ao mesmo tempo se sentisse sua irrealidade se sombras casuais de tintas, e ao mesmo tempo ainda sua concretude de objetos carregados de significado, a força com que se agarravam à atenção que tentava expulsá- las.
Para conseguir colocar tudo isso numa fotografia era preciso conquistar uma habilidade técnica extraordinária, mas só então Antonino poderia parar de fotografar. Esgotadas todas as possibilidades, no momento em que o círculo se fechava sobre si mesmo. Antonino entendeu que fotografar fotografias era o único caminho que lhe restava, aliás, o único caminho que ele havia obscuramente procurado até então.

Texto retirado do livro:
CALVINO, Ítalo. A Aventura de um Fotógrafo. In: Os Amores Difíceis. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 51-64.

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